domingo, 11 de abril de 2010

Quanto à chuva

Uma semana depois de tudo, posso dizer que estou bem, obrigado por perguntar. Quanto à Niterói, já esteve melhor.
Na maior parte, estamos bem. Não tive notícias ruins (pelo menos por enquanto) de amigos próximos atingidos. Digo, atingidos, todos fomos. Não teve como fugir. Mas os que mais sofreram mesmo, foram os que sempre mais sofrem.
Fiquei isolado na Região Oceânica por três dias. Na Terça-feira, logo após o dilúvio, havia aquele clima de fim de mundo em todas as televisões. Parecia que noticiavam um Apocalipse Zumbi. Ninguém poderia sair de casa. Ficassem todos com seus parentes queridos. De qualquer forma, saí de casa de tarde, apenas para atravessar a rua e comprar um gnochi. Estava com fome.
Ao sair do meu condomínio, comecei a assimilar o tamanho da coisa. Entendi que não estavam pedindo para as pessoas não saírem de casa apenas pelo perigo. Era também porque sair de casa era inviável.
As ruas totalmente alagadas. Olhei em volta. Não tinha como não achar um morro que não tivesse desabado. Crateras no meio das ruas. E, mesmo nos espaços onde o trânsito era possível, as ruas estavam apavorantemente vazias. Lembrei de um filme que eu gosto, "Extermínio". Uma perturbadora comparação, de fato.
Nos supermercados, o desespero das pessoas atrás de mantimentos. Totalmente lotados. Lembrei de outro filme, "O Nevoeiro". Comecei a escutar as primeiras notícias de que todas as estradas estavam interditadas. Achei perturbador saber que estávamos isolados, mas o conhecimento de que eu não sairia de casa se mostrou mais reconfortante do que isso.
Um dia dentro de casa se passou. Vieram as notícias de mortes. Todos estranhavam o fato de que ninguém buscava entrevistas com o prefeito de Niterói, apenas com o do Rio, apesar de Niterói possuir um número de mortos um pouco maior.
Na quarta feira, tentei sair de casa. Havia a notícia de que o Morro da Ititioca estaria aberto, visto que a Garganta, a Cachoeira e a Alameda São Boaventura estariam interditadas. Saindo do meu condomínio, e subindo a Serra da Colina, comecei a tomar maior consciência da destruição. Todas as estradas estavam tomadas pela terra.
De carro, tentei levar meus pais no aeroporto. Fiquei duas horas e meia engarrafado apenas no Largo da Batalha. Desisti, voltei para casa. Passei mais um dia tranquilo dentro de casa, vendo tv e filmes com minha família.
Na quinta pela manhã, veio a notícia: Um morro havia desabado, mais de 200 pessoas estavam soterradas. Os planos de re-candidatura do prefeito de Niterói tinham ido por água abaixo (se você esperava uma piada, aí tem uma). E ele agora estava dando entrevistas, tudo que ele não queria fazer.
Senti um nó no estômago. Apenas por um motivo. Eu sabia a diferença básica entre uma pessoa soterrada no terremoto do Haiti e uma soterrada em um deslizamento de terra. Quando uma casa cai em cima de você, por causa de um terremoto, se você dá a sorte de não morrer esmagado ou de hemorragia, há a possibilidade de você ser resgatado, pois o ar pode formar bolsões ou circular entre os escombros. Agora, se um morro, encharcado, cheio de terra, casas, pessoas e lixo cai em cima de você, você morre esmagado e soterrado. A esperança é mínima. 200 pessoas estava ali, mortas de uma vez só. E eu sabia que ninguém se importaria tanto se tivessem morrido o mesmo número de pessoas em pontos diferentes da cidade.
Custou para saber o que me incomodava tanto. E percebi. As pessoas não ficam chocadas porque morreram 200 pessoas pobres. Isso em si é perturbador. Mas o que é mais perturbador, é perceber que o grande foco foi todo para a política.
"Como poderiam deixar ser construída uma favela em um lixão?".
Engraçado se preocuparem com isso agora. Ninguém nunca se importou onde surge uma favela. Ninguém reclamou quando começou a ser construída uma em cima de um lixão. Mas agora que caiu, virou política. "Como poderiam deixar ser construída uma favela em um lixão?".

Sei lá o que está acontecendo. Na quinta feira mesmo, consegui chegar em Icaraí. Passei pela Alameda São Boaventura, que estava totalmente destruída na altura da Caixa D'água. A pista no sentido Alcântara estava soterrada e metade da pista no sentido Icaraí desabou. Já em Icaraí, a situação estava muito melhor. Sempre está. Fiquei por aqui até o Sábado, sem voltar para a Região Oceânica, sempre "meio-isolada". No sábado, subi a Cachoeira. Vi que algumas casas vão cair com o próximo pingo d'água que cair. Os moradores estão sendo deslojados. Cheguei em casa denovo. As coisas estavam voltando ao normal.

As pessoas logo vão esquecer que morreram 300 pessoas espalhadas pela cidade. Quase todas pobres. Também, logo todo mundo vai se esquecer que a cada chuva que cair, mais casas vão cair, e mais pessoas vão morrer. Só vão se lembrar que ficaram em casa, com medo de um arrastão (que provavelmente não existiu). Nem vão se esquecer que a Prefeitura de Niterói deixou uma favela ser construída em um lixão, e que ESSA FAVELA caiu. Vão passar direto por qualquer mendigo moribundo na rua, mas irão fazer doações por 3 semanas para os desabrigados. Daqui a 1 ano, quando um desses desabrigados assaltá-las, vão ficar horrorizadas com a violência.

Já não sei mais no que acreditar, ou no que depositar a minha fé. A chuva cai sempre, afinal.
Eu estou bem, mas Niterói já esteve melhor.