sábado, 18 de junho de 2011

Silvestre

De cima do muro os contratos que estabelecemos são um ultraje. Eu sei que eu prometi o mundo. Eu não estava mentindo; só estava enganado.

Estatisticamente, isso era sobre mim, mas você achou um modo de entrar na equação.

No topo do mundo os contratos que nos ligam e nos mantém unidos são uma piada.
E aqui eu estou conversando com a atmosfera densa que me cerca; falando a língua do vento, reprogramando nossos contratos, e desejando entender o que você diz.
Porque parece que nós cometemos um erro. E parecia tão confortável que achamos que nunca chegaríamos aqui - mas cá estamos.
Parece que nós cometemos um erro. Nós fomos egoístas e impulsivos. Fomos possessivos com você e comigo.
Estatisticamente, isso não é sequer sobre você e eu.

Sete anos e contando, esperando por um ideal de conforto que eu achei que fosse amor, apenas pra descobrir que eu estive errado o tempo todo.
Por sete longos anos, e contando.
Embora eu conte com mais frequência o tempo que me resta do que o tempo que passou.
Eu tenho agora T-menos quantos anos?
(E contando...)

Isso não é amor.
Porque nada é tão doce quanto encher esses desejos com esperança.
E nada pode ser assim tão traiçoeiro.

Isso é a vida no centro de tratamento intensivo.
Isso é fisioterapia emocional, para que eu possa me curar de mim mesmo, e caminhar por mim mesmo, com os meus próprios pés.

Estatisticamente, isso não é sequer sobre você e eu.
Isso é meu, sinceramente meu. Apenas meu.

Isso é a vida num hospital.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O Cisne Gigante (Parte II)

O Cisne Gigante, há muitos anos, perdeu a voz. Seu bico se tornou pixelado, milimetricamente transformado em padrões repetitivos de palavras sem vida. A cada mentira que você conta, menor se torna a resolução do canto do Cisne; cada vez que você se convence delas, menos cor a fotografia da sua voz retém, e mais vulgar se torna a sua canção de morte.

O Cisne Gigante tem fantasmas inúmeros e infinitos residindo nas suas asas brancas, aveludados como nuvens de perfume na forma do âmago do desespero. Por mais que tente voar, ele carregará pra sempre o peso do remorso desses que passaram e encontraram refúgio em suas penas elegantes e frágeis. E quando o vinho acaba e o cabaré dançante entoa sua última canção, o Cisne Gigante sabe que nunca reclamará pra si o céu acima de seus olhos.

O Cisne Gigante guarda em suas entranhas fotos Polaroid de tudo o que ele observa - e ele observa eternamente; ele armazena no seu interior como marcas de queimadura as gravuras bizarras da vergonha que a vida transmite como uma doença. Você pode nunca saber, mas o Cisne Gigante sabe quem você é e tem uma foto sua em um momento de fraqueza e desgosto gravada no peito, e ele sente muito, por você e o seu esforço jogado fora, seu caráter raso e sua falta de foco.

Ele escreve uma peça aonde você é o protagonista, e aonde todas as garotas que você gostaria de ter fodido fazem uma participação especial. E, por Deus, você não acreditaria no final. Ele fotografa esse momento. E o momento não é nada parecido com o que a fotografia mostra.
(Cisne Gigante, me carregue para casa)

O Cisne Gigante tem nuvens radiotivas embaixo da sua língua, mau fado de um talento perigosamente nuclear. Suspeitamente carismático. Inacreditavelmente gentil.
Suas penas são cidades pouco suspeitas. E a essa altura, o seu peito se transformou num apartamento vazio, as paredes cobertas de fotografias mentirosas e habitado apenas pelo perfume amargo da solidão. Você poderia se sentar na mobília cara e luxuosa e assistir TV até morrer ali. Morrer ao não ver o tempo voar ao seu lado. Morrer sozinho. Morrer de solidão.

Mas cante, e a sua voz não vai parar de florescer jamais.

O Cisne Gigante tem um coração de diamante, tão raro que não se pode dar um preço. Mas o seu couro foi removido e dele foi feito decoração, e o seu cabelo é uma merda mesmo, então de quanto é a sua oferta?

Agora é um bom momento para se despir até o seu esqueleto vulgar, se sentar e assistir as bailarinas chutarem e girarem sobre seus próprios pés. Mas eu recomendaria tomar mais uma dose do que de mais forte a casa te oferecer. Vai doer como um nascer do Sol cru e malicioso, o veneno de uma caravela pirata quando o Cisne Gigante se explodir em fogos de artifício e fumaça dourada no apagar das luzes do cabaré.

Assim você voltará ao seu quarto de hotel, com a cortina fechada, e o cheiro da comida podre vai te lembrar que você não sai do quarto há sólidas duas semanas. Se você colocar a mão por debaixo da cama aonde as prostitutas executam seus serviços, você vai descobrir um reservatório de cocaína assustadoramente grande, porém menor que da última vez que você visitou o cabaré aonde reside o Cisne Gigante. Você vai ligar a TV na CNN para se lembrar que o mundo é uma tragédia, e assim não se preocupar com seu filho recém-nascido, que veio ao mundo pela virilha que você está alugando...

Batidas na porta, e você sabe quem é.
A sua sombra entra pela porta usando uma máscara de ski, e subitamente isso é uma machadinha na sua garganta.
"Me dê todo o seu dinheiro! Me dê toda a droga!"

E depois que ela for embora, você vai perceber que o Sol é uma metáfora esnobe de toda essa vida. Você vai arranhar o vidro até as suas unhas sangrarem, mas você não vai viver essa pintura.

Você é o remorso borbulhante e ácido da sua família, e você acha que está só dormindo e sonhando um delírio de marasmo.
Mas essa é a cortina fechando sobre você.
(Cisne Gigante, me carrege para o rio)
Todas as coisas que você gostaria de dizer estão enterradas com a sua cabeça rasurada, e todos os seus motivos superiores...
(Cisne Gigante, me carregue para o rio)
Você ainda não sabe quais são.
(Cisne Gigante, me carregue para o rio)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A Hiena (Parte I)

Veja este sorriso.
Este não é um sorriso alegre; sequer é um sorriso de alegria. Esta á uma careta retorcida de ardil.
Nos dias em que se acorda torpado, toma conta das suas funções um sorriso venenoso que poderia enganar, não fosse a sensação de incômodo, como que te avisasse: este não é um sorriso alegre.
É um sorriso de malícia.
Este ri com a mesma malícia com que rouba a presa que se preza abater, o sorriso que se preza manter.
Eu serei a hiena quando a atmosfera parecer ameaçar e nas arestas mal aparadas da luz diurna surgir o conflito que te faz o sangue quente, marchar em frente.
Porque perante este, a hiena ri. Não com alegria; mas com o esgar agressivo daquele que se diverte perante à dança das adversidades que te fisgam os objetivos.
A distância entre seus olhos inequívocos na noite furtiva, como a sua figura escondida por trás do riso jovem, e a presa orgulhosa. Com o orgulho que você clama roubar para si.
Não por necessidade. Eu serei a hiena quando privar-te dos seus orgulhos for o meu prazer.
Pelo fim do prazer. Pela mentira que este riso conta.
A mentira de uma vingança, um remorso, solidão ou desamor que se transforma no fogo de conquistar.
Este não é um sorriso alegre; ou sequer é um sorriso. Esta é uma convulsão de um prazer negro, profundo daquele que tem orgulho das próprias presas.
Este não é um animal; ou sequer é uma forma material. Esta é uma das figuras que habitam a chama do espírito do homem.
A chama da ofensividade, o sangue da presa abatida com o gosto doce da complitude.
Completar o instinto flamejante de subjugar. Surrupiar, satisfazer, suturar; repetir.
Eu serei a hiena quando o ser humano não for suficiente para ser completo por si.
Eu serei a hiena quando ser não tiver significado por inteiro.
Eu serei a hiena quando o obstáculo significar por si.
Este não é um sorriso de alegria; esta é a malícia de uma vontade inumana que só pode ser saciada com a ferocidade canina de um sorriso.
Que ria por último aquele que ri melhor.