segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Os sonhos são feitos da mais clara escuridão

Ontem faltou luz aqui em casa.
Na verdade, faltou na Região Oceânica inteira, umas 23 horas da noite.
Quando eu era criança, faltava direto. Agora, é até meio raro faltar luz, tudo graças ao progresso, essa irrefreável máquina.
Sei que é uma experiência um tanto traumatizante faltar luz quando você é criança.
Até mesmo adulto é um tanto traumatizante. Você simplesmente aperta os dijuntores e a luz não acende. Aperta os botões e as coisas não ligam. Dá medo de ficar o resto da vida sem luz, de voltar a viver como nossos tatataravós, isolados de tudo no meio da cidade, por não terem eletricidade.
Porém, o trauma maior é quando se é criança mesmo. Tanto é que até hoje eu tenho um pé atrás em relação ao escuro. Tudo bem que o meu sótão escuro também contribuiu para esse trauma, mas a falta de luz é até mais desesperadora do que isso.
Tanto é que desde criança eu sempre mantenho uma lanterna carregada (velas são sinistras demais) e em um lugar acessível (em cima de minha bancada) para um caso de eventualidade.
Bem, ontem FOI uma eventualidade, faltou luz!
Foi estranho. Num momento eu tinha diversos planos antes de dormir, como acessar um site, estudar um pouco, ver tv...quando faltou luz, todos se tornaram impraticáveis.
Só me restou ficar olhando as coisas com a minha fiel lanterna.
Olhei a casa inteira.
Engraçado, pela primeira vez, minha própria casa não pareceu ameaçadora no escuro.
Não senti nada dos medos irracionais, inexplicáveis, infantis e completamente compreensíveis que eu tinha quando criança, quando eu não sabia explicar do que tinha medo na minha própria casa, como se tivesse alguém me olhando do escuro, com inveja e ódio de uma criança medrosa.
Pela primeira vez, minha casa foi só uma casa escura e vazia e eu soube que alguma coisa tinha ficado para trás. Não senti pena, nem orgulho. Senti uma indiferença, um vazio como a minha própria casa.
Apaguei a lanterna, eu não ia precisar dela, pois tinha decidido aceitar a escuridão.
E meus olhos foram se acostumando à vista que eles tão bem conheciam.
E aí vem a parte engraçada.
Antes de faltar luz, fora da minha casa estava escuro. Escuro como costuma estar 23 horas da noite.
E agora, no escuro, estava absurdamente claro lá fora. Toda a Região Oceânica, do Cafubá até Itacoatiara apagada, e estava claro, como se o sol estivesse acabando de se pôr, lá fora!
Saí pela porta da frente de casa. Olhei para o céu. Estava sem Lua, nem Estrelas, completamente escuro. E aqui embaixo, tudo tão brilhante! Olhei para dentro de casa. Lá tudo estava negro.
Achando engraçado, decidi dar uma volta, de pijama mesmo.
Fui até o portão da frente de casa. E fiquei ali parado. Um carro passou, iluminando a claridade. Vi o motorista olhar para o meu portão e tomar um susto me ver ali, de pé no meio do escuro, igual um zumbi. Achei engraçadíssimo. Saí pelo portão, e tudo continuava claro. Olhei as ruas desertas, dava pra ver tudo, cada detalhe, até bem longe.
Escutei a voz de crianças rindo ali perto de mim.
Olhei na direção do som. Vinha do meu jardim.
Mas meu jardim estava vazio, e estava claro.
Percebi que as vozes não vinham do jardim, mas da rua. Estranho, porque eu podia jurar que vinha do jardim.
Fui até a rua. Vazia. Nas duas direções. Olhei para o campo de futebol. Nada. Nenhum carro vindo, todas as casas apagadas, ninguém nas ruas. E as crianças rindo. Risadas que não vinham das casas.
Eu estava delirando? Aquilo era um sonho?
E se fosse um sonho? Porque não seria?
E percebi. As risadas. A minha rua escura, mas ainda assim clara. Já tinha sonhado com tudo aquilo. Talvez, toda a noite eu sonhe com isso.
Entendi que é disso que são feito os meus sonhos. E talvez os de todo mundo. De noites claras, onde a noite nunca é escura e as ruas são vazias, cinzas.
Onde uma coisa passa meio desapercebida por você, onde a verdade passa meio desapercebida por você, e quando você se olhar, não tem nada lá.
O riso parou. Voltei para casa. Deitei, brinquei um pouco com a lantera no sofá da sala, iluminando todos os cantos escuros.
Acabei pegando no sono ali mesmo.
Acordei no meu quarto, umas 2 horas depois. A luz tinha voltado e estava acesa.
Fiquei meio desorientado, sem saber se tinha mesmo faltado luz.
Olhei para minha bancada e vi a lanterna ali em cima. Eu podia tê-la posto lá, ou ela podia nunca ter saído de lá.
Decidi não remoer a dúvida e voltei a dormir. Se fosse um sonho ou não, agora não fazia diferença.
A luz já tinha voltado e agora a rua estaria escura de qualquer modo.

4 comentários:

Guilherme Alfradique Klausner disse...

Nossa, genial cara. E eu estava lendo o texto com a trilha sonora de Castlevania, encaixou perfeitamente.

Oráculo disse...

Você não é uma criança medrosa. Sua casa é que é medonha mesmo.

Vinícius disse...

"Garçom, eu quero o que o pedobear ali tá tomando (Y)"

B@by® Soni@ M@ri@ Grillo disse...

Pesquisando no Google, um assunto totalmente diferente, me deparei com "Os sonhos são feitos da mais clara escuridão" do autor "Smokey".
Quero parabenizá-lo e saber onde posso encontrar mais textos dele.
meu email: somagril@terra.com.br.
Obrigada.
B@by®