quinta-feira, 26 de julho de 2007

O Preço da Identidade (Parte Dois)

A tímida luz da alvorada agora penetrava furtiva pelo buraco na vidraça. O homem ainda encontrava-se de pé, estático, com os olhos de insônia esbugalhados, estudando o vazio. A única parte de seu corpo que se movia era seu braço direito, que tremia compulsoriamente, apontando a arma para o buraco recém-aberto no vidro.

Os últimos acontecimentos eram nebulosos em sua mente. Aos poucos, reconstruiu uma retrospectiva... A arma fria em sua cabeça. Ele fechara os olhos e forçara o gatilho... E num reflexo, um movimento súbito, seu braço tirou a linha-de-fogo de sua têmpora, e atirou na janela, numa fração de segundos, imperceptível até para o atirador.

O homem nu, no meio do quarto, encarava o inocente ponto de luz no chão, e aceitava a metáfora que aquilo representava, enquanto a névoa ganhava um estranho colorido em sua mente. Largou o revólver e deixou-se cair de joelhos no chão, com lágrimas forçando caminho brutalmente pelo rosto. O homem de paletó não era sua identidade verdadeira, então por que escolhera aquilo? Sabia que aquela não era sua vida, então por que persistia?

Quando finalmente se recompôs, abriu novamente a gaveta e pegou a foto. Havia se forçado a esquecer o quanto ela era linda... Nunca vira uma mulher tão linda em toda sua vida, e o fato de ainda vê-la da mesma forma provava que nunca conseguira suprimir a paixão flamejante de outrora. Perguntava-se agora como era possível que ele, logo ele, tivesse abandonado sua amada. Deus, como podia ser tão burro?! Só agora percebera que as noites sem dormir pouco tinham a ver com a rotina no trabalho, e sim com a saudade daquela jovem, daqueles tempos, tão cheios de energia e de doçura... Mas estava disposto a consertar seu erro.

Arrumou seus poucos pertences pessoais, os poucos que tinham algum valor real após seu quase-renascimento, numa mochila, pegou algum dinheiro e saiu sem trancar a porta. Podia ouvir o telefone tocando dentro do quarto, e imaginar a voz grave do chefe ameaçando demiti-lo se ele não aparecesse no escritório em cinco minutos, mas pouco importava. Marcos não iria ao trabalho naquele dia. Talvez conseguisse pegar o primeiro ônibus para o seu passado. Talvez não. Mas isso pouco importava também. Marcos tinha todo o tempo do mundo.

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Tá aí, moçada. A segunda, e última parte do conto. O desfecho é com vocês.

- Ao som de: Arctic Monkeys - 505 -


I'd probably still adore you with your hands around my neck... Or I did, last time I checked.

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